Antes de você continuar a leitura, preciso te contar algumas coisas:
*Esse texto foi apresentado durante o 3o Congresso Mame Bem, em 19/11/2022
** Tatí é a Tatí Vargas, fundadora da Mame Bem.
*** Camila é a Camila Ramos, que palestrou uma mesa antes da minha, e se emocionou agradecendo às colegas
**** A principal referência aqui é o Seminário IV, do Lacan.
Ah, você pode ouvir o texto todo em audio, gravado com a minha voz:
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Vamos lá:
Compasso de Desmame - por Fe Lopes
Eu gosto muito de roteiro. Como as histórias começam, quem são os personagens, de que forma eles se ligam, e principalmente como as histórias finalizam. Porque o fim faz uma marca que te faz repensar e ressignificar todo começo da história.
É como no This is Us!
Eu não vou dar spoiler, podem ficar tranquilas! Alguém aqui ainda não viu nenhum episódio desse seriado?
This is Us é o Posto Ipiranga das séries. Quero uma série sobre luto? Tem no this is Us! Uma sobre parto? Tem no This is Us!
Eu trouxe o This is Ud não pra falar de amamentação, mas pra falar sobre finais. O This é lindo e parte disso tem a ver com o fato dele acabar.
Ou vocês acham que foi por acaso que a Tati escolheu desmame pra última mesa do congresso?
A gente tá chegando no final do congresso. Camila já inaugurou as lágrimas. Porque eh isso, Tudo tem um final e tudo final tem emoção. A gente não precisa nem fugir da emoção, nem ter medo de que ela será tão grande que não conseguiremos lidar, e nos perderemos pra sempre na intensidade do adeus.
Aliás, será que qdo se trata de desmame, o encerramento acontece qdo o bebê engole a última gota de leite?
Do ponto de vista físico, certamente.
Mas o roteiro da parentalidade é feito de corpo, psiquismo e sociedade.
Daí pra pensar em final de amamentação, é necessário que a gente volte ao começo. Uma filha, um filho, que viram pai e mãe, mãe e mãe, pai e pai, ou somente mãe, ou somente pai, a depender da configuração da família. Seja como for, temos um adulto que deixa de ser somente filho com a chegada de um bebê.
Não é instantâneo, a gente sabe, mas vai acontecendo, no gerúndio dos cuidados cotidianos que banham o corpo do bebê na repetição da ação amorosa do cuidar. E apesar de pouco falado, o bebê também instaura a parentalidade no corpo desses pais.
É um roteiro de musical, com muito descompasso, com os adultos guiando, mas com os pequenos também fazendo a dança acontecer, porque dançar é encontro.
Só que a música é dinâmica, e nesse caso é uma parte muito viva do roteiro, tocando as vezes alheia as preferências dos dançarinos.
E qdo vc menos espera, o compasso muda pra movimentos mais amplos, abertos, espaçados, em direção ao mundo – vasto mundo, diria o poeta.
E as vezes tá tão gostoso ali, aquela dança íntima, corpo colado no corpo, que dói abrir, liberar pra dançar com outros pares, viver outras músicas, outros encontros... mas é que vida é urgente, você pisca e o bebê: puff, cresceu!
Tem quem celebre a batida nova, ensaie pequenos solos, e quem se ressinta muito com a mudança de samba daqueles q você dança bem juntinho mesmo, pra uma psy trance: cada um meio curtindo a sua viagem, mas todo mundo no mesmo festival, sabem como é?
Acontece que é aquilo, roteiro bom é roteiro que tem movimento.
E a gente até pode pedir pra parar, chorar, pedir pra voltar, reclamar com o DJ que não curte essa música, mas isso não ira mudar a dinâmica da vida: bebês crescem, suas necessidades mudam, e, vejam só: a gente muda também - e cresce!
E aí tem quem chore justamente por isso, porque passou rápido demais, e tem quem chore pq demorou demais a esse crescimento acontecer – e tem também quem não tem nem tempo, nem direito, a chorar. Mas eu não vim falar delas hoje.
Fato é que aquela dança que parecia fazer de 2 um corpo só, não dura pra sempre. Dura o tempo necessário pra que ambos possam aprender aqueles passinhos de ir e voltar, sabem como é no forró?
Pronto, é isso:
Vai-volta.
Mamãe vai-mamãe volta,
mamãe vai-bebê vai- mamãe volta-bebê volta
E as fronteiras dos corpos ficam cada mais visíveis, os espaços de respiro mais alargados e os encontros com mais surpresas. Ah, que coisa bonita a saudades saciada no reencontro! Poucas coisas são mais potentes nessa experiência de maternar/paternar do que se surpreender com as descobertas que os filhos fazem, longe dos olhos dos pais - e se voltam pra contar, que presente.
Agora vejam só, do ponto de vista psicanalítico, quando acontece o desmame? Na última gota de leite ou no dia que a gente não tem mais pai ou mãe pra contar como foi palestrar no Mame Bem?
O desmame, pra psicanálise, que é o lugar de onde eu falo hoje, ele não fala do fim da amamentação.
Inclusive o fim da amamentação é tema que já foi controverso entre consultoras e promotoras de aleitamento – ainda é, dependendo do público – quando a gente pensa nos inícios: os baixos índices de aleitamento humano no Brasil. Mas eu não vim falar disso hoje.
Quero falar desse pequeno lugar psicanalítico nodesmame. Falar do que eu vejo se re-atualizar todos os dias na minha clínica com adultos: a dificuldade da separação de corpos entre pais e filhos, e da transmissão da autonomia.
Desmame, pra psicanálise, é o ato de separar-se desse corpo-filho, retomar o corpo-mãe/pai, voltar o centro de gravidade pra si, mesmo q não exatamente pro mesmo eixo, e que é tarefa conduzida por um adulto.
Por quê?
Porque esse adulto já conhece o prazer da autonomia e, inclusive, transmite isso pro filho na forma de aposta de vida: Vai lá, você consegue. Tô aqui!
É uma frase que re-estende o cordão umbilical em formato de palavra, até o momento em que ele será apenas um olhar durante o drible no campo de futebol, ou uma lembrança amorosa, na hora do frio na barriga de subir no palco e falar pra vocês hoje, por exemplo – q eu não liguei pra minha mãe antes... mas talvez eu tenha pedido um help pras minhas amigas, por quê, né? O mundo se alarga e a gente descobre que pode se apoiar em tantos outros corpos, mesmo qdo o mergulho, ou a fala a fazer, seja um ato solitário. Porque autonomia é trabalho de um, é da solidão de sustentar o desejo, mas não quer dizer isolamento.
Voltemos!
Fato é que desmame é acolhimento sem emprestar o corpo. E como na amamentação, que a gente não vê o leite sair do nosso corpo, mas se âncora em sinais de que tudo está correndo como deveria. Ou seja, primeiro há uma aposta, depois a gente verifica se o caminho está correto. Apostar é a transmissão da confiança na vida - e ela se alarga pra ser feita de palavras, olhares... E essa é uma função tão importante na construção de uma vida, que a gente não faz ideia!
É verdade que somos aqui todas apaixonadas pelo leite humano, pela potência de um corpo em alimentar e construir outro corpo. Brigamos pelo direito de que todos os bebês e todas as pessoas que desejem amamentar possam ter acesso a essa experiência.
Mas não podemos perder de vista o final – afinal de contas, a gente aposta na amamentação olhando pro futuro daquelas crianças, desejando que elas sejam mais saudáveis, com relações mais legais com seus cuidadores, corpos mais fortes, etc e tal. A gente investe aqui, faz uma aposta, pra colher os frutos dessa amamentação a posteriori, quando amamentação já terá terminado.
Amamentação não é um presente que não passa, o que é diferente de dizer que ela teria um tempo certo pra se tornar passado.
Cada experiência vai ter sua própria dinâmica, porque é o que eu disse sobre a música que muda de repente, altera os planos, e nós enquanto profissionais de saúde não estamos aqui pra guiar o momento da trocar de disco.
Nossa função é ser quem acolhe alguém que está com dificuldade de dançar, mas sem ser aquele que dá as regras, os passos corretos que vão garantir troféu "bebê mais feliz do pedaço."
A gente esta num momento histórico que tomar decisões tem sido dia mais assustador, e as pessoas precisam de mais e mais garantias de que elas estarão certas no futuro - desconhecido!
Ninguém quer errar com os filhos, claro, mas assim como a mãe/o cuidador primordial precisa apostar no bebê, ela também precisa apostar nela – e apostar é tomar uma decisão sem saber como será o resultado exatamente.
O desmame é isso: uma aposta necessária que firma um compromisso com a ampliação da vida.
Aí o profissional pode estar ali, ao lado desse adulto que está conduzindo o desmame, auxiliando na construção dessa coreografia de adeus. Pra isso as vezes a gente dá a mão, dança juntos se for preciso, até o momento de se retirar, e deixar que o cuidador possa conduzir o processo dele, no tempo dele, no encontro dele com o filho dele.
Ou filhos, se a gente for pensar no This is Us, que são 3, e eles vivem tantas separações e alargamento de mundo ao longo dos episódios, até o momento em que... não vou dar spoiler, podem ficar tranquilas. Mas o This is Us acaba com emoção intensa, deixa marcas profundas e muita saudades. Bem no estilo daquelas coisas que nos transformam pra sempre, sabem?
E a parentalidade é como aqui, no congresso. Pra que haja novos começos, novos congressos, ê necessário separações de corpos. É necessário final.
Só que no roteiro da parentalidade, vejam só, o roteiro fica mais complexo! E vale muito mais a poética do quilombola Nêgo Bispo, que nos lembra que somos feitos de começo-meio-e começo - mas isso já é começo de outros começos.
Obrigada
Fe Lopes
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